Jazz

 

Um quarto de motel. É terça-feira, meio de uma semana de um mês sem feriados, com 31 dias. Já passam das 11 da noite. Pela janela se vê a cidade inteira. E um jazz toca, vindo de caixas de som invisíveis.

Ele acendeu aquele maldito cigarro. Perguntou se tinha problema. Eu deveria ter dito que sim, mas fiz que ‘não’ com a cabeça. A janela não abre, lavei meu cabelo hoje e vai ficar com esse cheiro nojento agora.

Ele fica parado em frente à janela, que na verdade era quase uma parede de vidro. Ela está totalmente nua, ele, de camisa social desabotoada e cueca.

- Isso não é jazz.

Não interessa. O clima estava bom, gostoso. Me deixa curtir.

- O jazz verdadeiro, sabe? Esse sim, foi feito pra chocar. Quando você escuta um jazz de verdade, chega a doer. Mas depois você se acostuma.

Salto no vazio, olhando aquele mar de pessoas no horizonte, o salto era no vazio.

 

Ilustração: TAIOM

 

Vazio.

Sentia isso por pouca coisa e coisa pouca. A impressão que tinha construído de si nos últimos meses — desde aquele trágico fim de relacionamento — é de que era forte, durona, inatingível.

- Me lembra de te passar uns nomes de jazz pra você baixar depois. Você vai pirar.

Já tô pirando. Tem mais de 48 horas que meu coração tá funcionando daquele jeito estranho, que faz tudo pulsar, até minhas têmporas.

Estou sendo rejeitada. Que nem o jazz.

- Imagina ter poder sobre tudo isso.

Ele parecia hipnotizado por aquelas luzes. Eu também estava, mas eram desejos diferentes…Totalmente diferentes.

Que ilusão. Definitivamente não sabe o que é a joie de vivre.

Eu só conseguia pensar naquela outra noite. Noite sem sono. E desperdiçar minhas horas mais recentes de vida tentando desvendar o segredo da cura da rejeição. Eu também quero ser poderosa. Mas não tenho ninguém pra quem admitir isso. Nossa como eu tô frágil ainda.

Acabou o vinho. Que vinho ruim. Mas ela continuou com a taça na boca, apoiando um braço no outro, que estava apoiado no joelho, e a taça sendo apoiada apenas por seus lábios inferiores.

- Eu quero me desapegar. De tudo.

- É, a gente é bem diferente.

Somos.

Ah, os joguinhos de poder, pensava ela. O pensamento estava distante, mas nisso, ela podia concordar com ele.

O meio é a mensagem. A mensagem que recebi foi nenhuma, mas eu entendi. Entendi sua mensagem. Como alguém consegue ignorar o outro alguém depois de uma noite daquelas?

Ele agora a observava silenciosamente. Finalmente. Então…

- Você gostou? Foi bom pra você?

As pessoas quase-conhecidas ainda se perguntam esse tipo de coisa?

- Foi.

- Pra mim também. Uma despedida e tanto.

Nem achei tudo isso, mas esses caras muito certinhos se excitam com qualquer coisa vinda de uma louca como eu.

- Vamos de novo?

Eu não sabia mais como passar o tempo. Mas não queria sair dali.

- Não consigo, preciso de mais um tempo.

Ah, lá se foram meus 17 anos e meus homens de 20 e poucos…Acabei matando aquela garrafa daquele vinho horrível. Eu fico toda soltinha quando bebo, acho que vou dançar.

Ela esboçou uma dancinha levemente sensual, levemente, ao som daquele jazz que não era subversivo. Ela dançou para si, hipnotizada por seu reflexo que se fundia com as luzes da cidade. Ela estava bem consigo. Estava ali, nua, em frente a um quase-estranho, e não estava nem aí. Isso era inédito.

- Tá tarde. Vamos?

Tarde pra quê?

- Pode ser.

Ele começou a se vestir. Ela não. Ele usava abotoaduras na camisa. Abotoaduras me dão tesão. É muito charmoso. Ele pegou o telefone e ligou na recepção pedindo a conta.

- Quê?! 110 reais nesse vinho? Ruim desse jeito?

Ele desligou o telefone incrédulo, mas jocoso. Eu adoro o sorriso dele.

- Apaga a luz.

Ele abriu a porta e apagou a luz.

- Não, fecha a porta também.

Ele fechou e sentou-se na cama, não ao meu lado.

- Hum. Boa ideia.

Agora só as luzes da cidade iluminavam parte do corpo dela, formando uma bela silhueta, em contraste com a falta de luz no ambiente.

Um barulho lá fora.

- A conta chegou. Vou lá ver.

- Quer dividir?

- Jamais! Onde já se viu mulher pagar motel?

Meu bem, eu transei também, lembra? Podia ter passado sem essa…Mas eu não fazia questão de pagar. Mais de 200 reais por uma transa mais ou menos. Eu tava sem grana na verdade. Fazia tanto tempo que não ia a um motel, esqueci que tinha que pagar.

Eu me vesti. Bem devagar, aquelas luzes eram viciantes. Ele abriu a porta para eu passar. Fico pensando na arquitetura de um motel. Várias passagens escondidas, tantas pessoas indo, vindo, gozando, trabalhando, gemendo. E ninguém se vendo.

A gente entrou no carro e eu pedi para colocar uma música. Eu estava é afim mesmo de ouvir Nina Simone.

Strange Fruit começou a tocar. Estávamos naquela estrada que liga Sobradinho à Brasília, parece um início de montanha-russa. Mas perde logo a emoção. Só tinha a gente ali, e um carro velho, caindo aos pedaços, que andava a 50km/h na faixa da esquerda. Isso me irrita até quando sou a passageira.

Eu abri a janela e coloquei a cabeça para fora.