Manhattan

 

Eu acordei como se não tivesse dormido. Minhas costas doíam, meu coração acelerado. Assim, sem motivo aparente algum. Pensando em você, com você ao meu lado.

É saudade, você me disse.

A luz nesse quarto era especialmente bonita. Me senti uma mulher de negócios que estava na cidade por poucas horas, atribulada, preocupada, suada — que, nervosa, busca o celular na bolsa enquanto você me olha. E então eu páro. Te olho. Você me vê. Que importa o resto? No epicentro daquele poderio todo, ministérios, repartições, senados e câmaras, estávamos nós. Sobre tudo, assistindo a tudo de camarote. Que é poder, afinal?

Como pode? Você tá aqui.

É saudade, repetiu.

Olhei pra janela. A cortina era amarelada, difundia a luz do meio-dia como se fosse cedo ainda. Ou o fim de um dia. Não o meio dele, não no meio de toda aquela gente, não no meio de todo aquele ir e vir.

Me sentei. Na frente da cama havia um espelho, fiquei te observando pelo reflexo. Você deitado de bruço, só dava pra ver suas costas — nuas-, sua boca semi-aberta e os olhos fechados. Contemplação. Obra de arte.

Fiquei pensando no que disse. Saudade. Tive sede, não tinha água. No balcão algumas garrafas de vinho, uma delas quase cheia. Por mais que eu venere Dionisio, beber vinho agora não dá, me perco. Muito calor lá fora, muitas pessoas me apressando para que eu saísse dali. Eu só quis viver. Quis me exceder. Inspirada pelas Tourigas Nacionais, seu aroma, seus lábios roxos, o suor que o álcool te causou nesse calor de verão seco. O vinho era seco.

Pode ser ansiedade também. Por não querer sentir saudade.

Olhei pela janela. Vi a multidão se movendo na rodoviária, o trânsito dos carros em agonia. Voltavam para almoçar em suas casas — enquanto isso é ainda possível em Brasília. Suspiro. Desisto.

Me joguei de volta na cama e você sorriu. De olhos fechados, mas sorriu.

Saudade só existe em português.

Hum. Fiquei pensando nas línguas que eu sabia. Todas falam de falta. Nenhuma de saudade.

Ainda bem que a gente fala português.

Os celulares tocavam, quase que ininterruptamente. Num susto me levantei de novo. Senti sua mão nas minhas costas. Me dei dois segundos para qualquer boa ideia que pudesse me manter ali…Todas eram boas demais.

Demais.

Estranho sentir os pés no chão depois de séculos sem tocá-lo. Ainda mais um chão de carpete. Carpete velho. Quem tem carpete ainda? Carpete quente, nesse mundo quente — trágico — mundo de gentes em processo lento de autofagia. Se ao menos levássemos em consideração apenas o lado bom de se comer… Mas até eu me dava desculpas demais para fugir do prazer. Prazer demais dá culpa. E isso é culpa da Igreja, ah se é.

Enquanto isso meus pés fincados no chão. O caminho era longo, quente e tortuoso até onde o dever me chamava. Tomei uma ducha rápida, vesti a mesma roupa de ontem, sem o cheiro de ontem. Ontem eu cheguei, hoje eu vou. Voltei pro quarto. Você sentado em frente à janela, sua silhueta leve sente minha presença com pesar. Você me olha. Eu te vejo.

Saí.

 
 
 

ilustração Taiom Almeida

 
 

O sol estava rachando. Eu ainda estava com sede. Meu celular tocou e era uma mensagem sua. Até hoje sinto frio na barriga de ver seu nome na tela. Devia ter tomado aquele vinho.