O segredo dos Pampas

 

Benedito era um soldado desses bem sem valor. Sem valor porque podia ter valor, mas não queria saber de subir na vida, não queria entender a milenar arte da guerra, se metia em briga de soldado o tempo todo, gastava todo o soldo em cachaça — cachaça da pior qualidade — e não podia ver um rabo-de-saia que todo e qualquer propósito de maior valor que teve na vida era jogado para o alto. Traçar as mocinhas da alta estirpe, esse sim era seu grande e único objetivo na vida, porque as outras, bem, as outras, já não eram novidade há tempos. Traçar uma mocinha da alta estirpe requeria muita cautela, charme e sangue no olho. Sangue no olho porque se o pai de uma delas descobrisse suas tramas, ah…Ah! Benedito seria no mínimo enforcado nu em praça pública.

Desde que o tempo é tempo, o homem é incumbido de todo o desenrolar do cortejo. É ele quem dá o olhar definitivo que mata, é ele quem vai até a janela da mocinha e lhe faz uma serenata, é ele quem escreve a primeira carta declarando toda sua vontade de comer — disfarçada de amor. É verdade, desde que o tempo é tempo, o homem é um comedor nato. O homem nasceu pra isso. E dizer para o homem que não é bem assim, é duro, dói na alma. Por isso que hoje o homem é o que é. No duro mesmo, é um medroso. Bom, mas voltemos à história do Benedito.

Eis que um dia chega à vila uma moça linda. Filha do coronel — e agora o nosso novo prefeito — da pele cor de marfim, cabelos da cor do trigo, olhos como as pradarias do sul. Ah, mas essa moça — o nome dela era Maria Adelaide — era uma moça perfeita para satisfazer as motivações de vida de Benedito. Mas há de se ter muita cautela, Benedito, qualquer passo em falso, e o alçapão se abre para você.

Na noite seguinte à chegada de Maria Adelaide, houve uma grande festa na vila para celebrar os novos moradores e o novo prefeito. Uma festa regada à churrasco, vinhos de todos os tipos vindos da Argentina e do Uruguai, muita música, homens usando suas melhores bombachas com seus facões presos às botas, bandeirolas e fogueiras. Foi uma alegria só. Maria Adelaide, muito tímida, ficou o tempo todo junto de sua mãe e seu pai no camarote que foi montado exclusivamente para a família. ‘Algum dia ela se atreverá a sair de lá?’ se indagava Benedito. Depois de lançar-lhe muitos olhares de predador, sem obter êxito, Benedito senta-se junto à fogueira e toma seu chimarrão. Chateado, muito chateado com o desenrolar de sua noite. Então avista outro cabra se aproximando do camarote onde estava Maria Adelaide. Esse cabra era o Joaquim, com quem já havia se metido em muitas brigas de boteco. Benedito, observador como uma águia, segue os passos e olhares de Joaquim. E vejam só! A moça correspondeu! Isso era inaceitável. Inaceitável, Benedito. Benedito então larga seu chimarrão, puxa o facão da bota e, furioso, anda em direção aos pombinhos. ‘Joaquim!’, ele berra. Joaquim assustado se vira para Benedito. ‘Joaquim! Você não é homem para esta mulher, recue agora ou duele comigo!’. Joaquim, que apesar de ser menor que Benedito, era também um bonachão. Sabia da arte de manejar um facão com destreza. Olhou para Benedito como quem provoca e sacou o seu facão. O duelo estava instalado. Maria Adelaide deu um sorrisinho tímido de satisfação. Oras, ela mal chegou e já estão disputando a vida por ela? Que adrenalina!

 
 
 

Facão vai, facão vem, e nada desse duelo ser decidido. Passaram-se vários minutos e o empate persistia. O cel. Fulgêncio, farto daquele lenga-lenga, levanta-se do que parecia ser uma espécie de trono, e grita ‘Basta!’. Com aquela voz de elefante africano em fúria, os dois pelejadores quase se petrificam, literalmente, tamanho o susto. ‘Eu não aguento mais ver esses dois cabras murchos lutando pela atenção de minha filha! Vocês jamais serão dignos de seu amor, e lutam como se possuíssem honra para tal. Isso é um grande desacato e ordeno que ambos sejam exilados para bem longe daqui! Benedito e Joaquim, incrédulos com tanta tirania nunca vista antes naquela vila de pouca importância e proporção, se entreolharam e tentaram uma escapada de mestre. Sem sucesso, obviamente. Maria Adelaide só ria. E se satisfez pela noite.

 
 

Na manhã seguinte, antes mesmo do sol raiar, Benedito e Joaquim foram enviados, junto de dois guardas da prefeitura para bem longe dali. Um lugar tão longe que não se ouvia o mugido de bois nem o relinchar dos cavalos. E ficaram sós, Benedito e Joaquim, Joaquim e Benedito. Como eram cabras que não valiam nada e nem queriam saber de valer alguma coisa, com o pouco conhecimento que tinham da vida no meio de toda aquela flora, montaram uma pequena tenda e uma fogueira para assarem sua caça. Não se deram nem ao trabalho de tentar voltar, pois saberiam que de duas uma: ou nunca conseguiriam chegar ou, se por acaso chegassem, seriam submetidos à pena capital. E nenhum dos esforços compensava. Agora, como satisfazer a carne? A carne quando fica fraca implora por carne. E Joaquim era a única carne disponível para Benedito, e Benedito para Joaquim. Então, num ato desesperado, se beijaram! Arrancaram suas roupas e se amaram loucamente por dias e noites a fio. Até que um dia não aguentaram tanta explosão e iniciaram um outro duelo. Um duelo que só tinha o céu como testemunha. Um duelo para decidir afinal: se casam de uma vez ou morrem. E como de todas as últimas vezes o resultado foi o empate. Lutaram até se esgotar, até perceberem que nunca ninguém havia duelado tanto por amor por eles, e então sob o céu estrelado tomara a primeira grande e única decisão em suas vidas: dali jamais sairiam separados.

 
 

ilustração Taiom Almeida